Autor - Amélia de Fátima Aversa Araújo e Ivan Carlos de Araújo - em
23 de novembro de 2021
- Atualizado às 18:14
A Lei nº 17.406, de 15 de setembro de 2021, e que entrou em vigor em todo o Estado de São Paulo, tem como objetivo estampado em sua ementa “obrigar os condomínios residenciais e comerciais” a comunicar aos órgãos de segurança pública episódios de violência doméstica e familiar.
Algumas questões de interesse podem ser levantadas.
Uma pessoa que se “omite” em relação a um crime praticado por outra pessoa pode ser responsabilizada por esse crime? Se a pessoa for obrigada a agir (e puder fazê-lo) para evitar o resultado delitivo, a omissão é chamada “penalmente relevante” (art. 13, § 2ª, alíneas “a”, “b”, e “c”, Código Penal), e ela responderá pelo mesmo crime. Suponha que o namorado da mãe de uma menina de 4 anos pratique atos libidinosos com a criança. A mãe sabe do fato, mas nada faz para evitá-lo, por receio de romper com o namorado. Essa mãe responde, igualmente, pelo crime de estupro de vulnerável praticado pelo namorado, embora ela não realize a conduta ativa de estuprar. Isso ocorre porque a lei (Código Civil) determina que os genitores são responsáveis por cuidar da prole, evitando que atos lesivos aconteçam.
Se essa determinação de evitar o resultado não existir, ou a omissão será um indiferente penal, ou será um outro crime. Exemplo: uma pessoa observa que um ladrão pulou o muro da casa do vizinho, e nada faz. Essa pessoa responderia pelo crime de furto ocorrido na casa do vizinho? Não, porque não tem o dever específico de evitar o resultado. Outro exemplo: uma pessoa observa um homem jogar uma criança pequena na piscina, para afogá-la. Essa pessoa será responsabilizada por homicídio caso a criancinha venha a morrer? Não, mas será responsabilizada por um crime diferente, a omissão de socorro com evento morte, porque deveria, ou prestar assistência, se pudesse fazê-lo, ou pedir ajuda a outrem.
Voltemos ao problema do síndico. Uma lei estadual não pode criar figuras típicas, vale dizer, não determina o que deve ser considerado “crime”. Somente uma lei federal pode fazê-lo. Mas, poderia a lei estadual criar hipóteses de dever de agir? Seria constitucional, nesse aspecto? Ou não?
A lei estadual referida determina que os síndicos e/ou administradores dos condomínios residenciais e comerciais devem encaminhar à autoridade (delegacia/órgão de segurança pública) comunicação sobre a ocorrência de episódios de violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças, adolescentes ou idosos (esquecendo, contudo, de deficientes). A comunicação deve ser imediata (ligação telefônica ou aplicativo móvel), se a violência estiver em andamento; se o fato já tiver ocorrido, em até 24 horas após a ciência do fato, comunicação por escrito (via física ou digital).
Poderíamos pensar: se não existe sanção para o descumprimento de tal obrigação (a imposição de multa ao síndico que não comunica a violência doméstica ocorrida no condomínio foi vetada pelo governador), não há obrigação. Existe uma sugestão de comportamento, não um dever.
Contudo, se a lei estabelece o dever imediato de comunicação em caso de violência que está em andamento, e se isso for uma omissão penalmente relevante, tal significa que o síndico poderia, em tese, ser responsabilizado pelo crime de violência doméstica pelos eventos ocorridos depois que isso chegou ao seu conhecimento. A ideia de se fomentar uma cultura contrária aos acontecimentos de violência doméstica e familiar teria resultado em uma nova hipótese em que o “omitir-se” equivale a praticar o delito. Seria um caso de se “atirar no que viu, acertar no que não viu”. O Ministério Público poderia, em tese, perseguir os síndicos omitentes, atribuindo a eles a participação no crime relativo à violência doméstica (!), situação, no mínimo, estranha.
No caso de fato violento já passado, o síndico tem que notificar a autoridade em 24 horas, de forma que não existe o dever de evitar um resultado que já ocorreu. Nem qualquer tipo de consequência na hipótese de não apresentar essa notificação.
Considerando, entretanto, que compete exclusivamente à União legislar em matéria penal (art. 22, I, Constituição Federal), se o Estado puder criar uma obrigação que transforma a pessoa em garante da não superveniência do resultado e, portanto, possível sujeito ativo de delito, isso não significaria que estaria cunhando um tipo penal de maneira oblíqua? A omissão do síndico seria criminosa em São Paulo, por exemplo, mas não em quaisquer outros Estados sem essa previsão.
Enfim, tem “muito pano para manga”.
Ivan Carlos de Araújo